Subsídios públicos envoltos em polémica
Chefe de missão dos Jogos Olímpicos suspeito de mau uso de dinheiro do Estado
Manuel Boa de Jesus, um dos dirigentes mais influentes no desporto nacional e chefe da missão portuguesa aos Jogos Olímpicos de Pequim, está envolvido em várias irregularidades na administração de financiamentos do Estado.
Uma auditoria feita às contas do World Gymnaestrada 2003, um projecto por ele presidido, que trouxe a Portugal milhares de atletas, aponta para várias irregularidades financeiras e sugere a existência de uma contabilidade paralela. Há mais de 20 anos quadro do Instituto do Desporto de Portugal (IDP) e actual presidente da Federação de Ginástica de Portugal (FGP), Boa de Jesus nunca foi, contudo, sancionado, nem teve de repor qualquer verba, continuando a gerir centenas de milhares de euros de subsídios governamentais.
Para além de administrar, enquanto presidente da FGP, financiamentos oriundos do Orçamento do Estado, Boa de Jesus revelou ter um papel determinante no financiamento do Comité Olímpico de Portugal (COP), participando nas negociações com o secretário de Estado do Desporto relativas às verbas a atribuir para os Jogos Olímpicos de 2012, em Londres.
Entre as irregularidades indicadas no relatório, datado de Dezembro de 2005 e realizado por uma sociedade de revisores oficiais de contas à comissão organizadora do World Gymnaestrada 2003 (WG 2003), estão a acumulação de remunerações por parte de Manuel Boa de Jesus, várias infracções fiscais, a inexistência de contratos com fornecedores, um “descontrolo absoluto” no que toca às receitas e o desvio de centenas de milhares de euros de patrocínios e financiamentos públicos para os cofres da FGP, da qual este técnico de carreira do IDP era, à data, vice-presidente.
Outro aspecto muito delicado, mas este não citado na auditoria, teve que ver com a participação de um amigo de Boa de Jesus, e então seu colega de direcção da FGP, nos negócios com a Gymnaestrada. Como o próprio Boa de Jesus confirmou ao PÚBLICO, Rodrigo Silva Gomes deixaria a direcção da FGP, já depois de participar na preparação do Gymnaestrada, “para poder” ganhar o contrato para o marketing e publicidade do evento, através da empresa Interact, de que é sócio maioritário.
Os auditores apenas referem que a Interact foi um dos parceiros do evento relativamente aos quais “nunca existiram contratos, nem foram divulgadas as respectivas condições”.
Manuel Boa de Jesus defende-se, afirmando que “nada disso tinha indícios criminais” e sublinhando o êxito da organização: “Não me arrependo de nada. Consegui que o Gymnaestrada não desse resultados negativos, algo que não é muito normal em Portugal.”
O IDP, sob a direcção de José Manuel Constantino, aprovou quatro contratos-programa com o WG 2003, a maioria deles assinados pelo então ministro do Desporto, José Lello, que totalizaram mais de dois milhões de euros, em 1999, 2000 e 2001. Estes acordos não “estabeleciam fins específicos para as verbas atribuídas, referindo apenas a sua correcta utilização no projecto em questão”.
O evento contou também com o financiamento de outros ministérios, institutos e autarquias.
No final do WG 2003 - e apesar de Boa de Jesus inicialmente ter promovido a ideia, em declarações à imprensa, de que os dinheiros governamentais eram escassos e punham em risco o evento - os resultados acabariam por ser muito relevantes: quase 1,8 milhões de euros, que acabaram por ser uma forma de financiamento indirecto da FGP.
Os auditores sustentam que isso permitiu que a FGP passasse “de uma situação de desequilíbrio financeiro, como a que se verificava até 2001 (...), para uma situação de total desafogo financeiro, como o comprovam os elevados depósitos à ordem e a prazo que a FGP” detinha à data da auditoria.
Na sequência da referida auditoria - encomendada pelo IDP, nunca tornada pública e só agora consultada pelo PÚBLICO - e de denúncias particulares, a Polícia Judiciária abriu um processo de averiguações que se mantém em aberto. Não terá, contudo, feito quaisquer diligências entretanto.
Processo arquivado
Ao que o PÚBLICO apurou, os investigadores do Departamento Central de Investigação da Corrupção e da Criminalidade Económica e Financeira aguardam por novos dados, nomeadamente pela comunicação por parte do IDP do resultado de um processo disciplinar interposto a Boa de Jesus.
Ora, sucede que este processo já foi arquivado. Segundo afirmou o IDP ao PÚBLICO, concluiu-se não existirem “motivos e fundamento legal” que apontassem para uma “infracção disciplinar” no que respeita à “acumulação de funções”, visto que “a acumulação de remunerações, por si só, não constitui uma ilegalidade”. No processo disciplinar não foram relevadas muitas outras matérias suscitadas pela referida auditoria - apesar de serem várias e, segundo os autores da auditoria, inequívocas, as irregularidades de que Boa de Jesus foi responsável.
Quer o IDP, quer a Secretaria de Estado do Desporto não permitiram a consulta do referido processo disciplinar e recusaram esclarecer quando foi aberto e concluído.
Ainda segundo o IDP, o resultado deste inquérito disciplinar foi enviado para o Ministério Público. A Procuradoria-Geral da República, questionada sobre o assunto, afirmou não existir qualquer processo “relacionado com os factos”.
In: Público
Por: Ricardo Dias Felner